Estávamosni evento pela organização Mulheres em Porto Alegre/RS e lá estava sem intérprete para entregar e ouvir da nossa sinalização… aqui vai a CARTA DENÚNCIA
MULHERES SURDAS DO RIO GRANDE DO SUL
LEIA A CARTA NA ÍNTEGRA
Nós, mulheres surdas e mulheres deficientes auditivas1 gaúchas, reunidas em conferência no dia 04 de março de 2023, vimos através deste documento, solicitar a intervenção da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul referente à falta de acessibilidade comunicacional à mulher surda, bem como a conscientização necessária à sociedade sobre a nossa diferença. A acessibilidade comunicacional refere-se a nossa condição de uso de língua de sinais e a conscientização devida à sociedade é sobre nossa diferença linguística e não devido a deficiência. denunciamos que somos tratadas como incapazes, não necessitadas de informações, dementes, subalternas, submissas, manipuláveis. Destacam-se que os fatos ocorrem em áreas da saúde, segurança pública, educação e trabalho.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD (Lei 13.146, de 06 de julho de
2015) percebe nessas questões de acordo com o Art. 1o do EPD explicita que:
É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. (Lei 13.146/15)
Usando este documento informamos, ainda, que diversas denúncias foram realizadas pelas entidades representativas dos surdos, de maneira geral, mas que não obtivemos sucesso. E nós, mulheres surdas, somos a ponta mais prejudicada nos quesitos abaixo descritos, ainda que haja toda a garantia legal que que não passemos por situações diversas e constrangedoras, nosso cotidiano se apresenta marcado por descaso do poder público, abusos, falta de informação em todas as áreas da vida e traumas constantes.
1 Nesta carta de denúncia, sempre que nos referimos à mulher surda, nos referimos à mulher usuária de libras e também à mulher deficiente auditiva que não é totalmente surda e tem algum grau de perda auditiva que não possibilita uma perfeita comunicação na língua de nosso país.
No Art. 3o Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
IV – Barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:
V – Comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), ..., meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações; (Lei 13.146/15)
Referindo-nos ao nosso primeiro quesito: o mercado de trabalho, ainda que com muito descaso conosco, ainda que enquanto mulheres surdas nossos salários sejam menores que de homens e mulheres ouvintes, lutamos pela efetiva equidade salarial. Ao Ministério Público do Trabalho Estadual, já denunciamos empresas que não respeitam a acessibilidade que necessitamos, não chamam Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais/Português (TILSP) para as entrevistas, nos expondo a realizarmos entrevistas por comunicação escrita - cabe destacar que muitas de nós, que utilizamos a Libras como primeira língua, não somos fluentes em português, e temos maior dificuldade na leitura e escrita. Assim, nos dificulta, ou seja, somos discriminadas neste quesito pela questão de gênero, surdez e linguística no acesso ao mercado de trabalho somos desconsideradas em relação às mulheres ouvintes. Nas reuniões de equipe de trabalho, raras são as empresas que se preocupam em chamar um TILSP ou faça alguma estratégia para que possamos compreender o que se passa e as informações referentes ao nosso local de trabalho. Não obstante, a maioria de nós é levada a ingressar no mercado de trabalho em vagas para trabalhos simples e, diante do relatado anteriormente, nos dificulta objetivamente galgarmos vagas com melhores remunerações e oportunidades em empresas que já estamos alocadas.
A lei nos reporta a algumas estratégias possíveis:
Art. 2o O tradutor e intérprete terá competência para realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa. (Lei 12.319, de 1° de setembro de 2010)
Art. 34. A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
§ 1o As pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos.
§ 2o A pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor.
§ 3o É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.
§ 4o A pessoa com deficiência tem direito à participação e ao acesso a cursos, treinamentos, educação continuada, planos de carreira, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo empregador, em igualdade de oportunidades com os demais empregados.
§ 5o É garantida aos trabalhadores com deficiência acessibilidade em cursos de formação e de capacitação. (Lei 13.146/15)
Estas questões em lei estão no papel, precisam ser aplicadas: nos garantindo um mínimo de dignidade e igualdade.
Em relação à área da saúde, ela se apresenta como uma das mais graves quanto a falta de acessibilidade, e conscientização social. Identificamos que muitas mulheres surdas não acessam o sistema de saúde, seja por falta de acessibilidade comunicacional, informação sobre a saúde da mulher ou, ainda, necessita que familiares (principalmente a mãe ou os filhos) a acompanhem para as consultas, deixando-as extremamente expostas em um momento íntimo ou sem informações sobre sua saúde, pois a família em raros casos sabe traduzir para a Libras. Não há, em hospitais ou Unidade Básica de Saúde, TILSP para intermediação comunicacional e que nos possibilite uma real compreensão sobre a nossa saúde. Ficamos à mercê de qualquer compreensão sobre o cuidado e autocuidado com nossa saúde.
Diante disso, a Advogada Cabral (2022) esclarece que:
As mulheres surdas estão mais sujeitas à violência em função de outros fatores que também envolvem a comunicação,
tendo em vista o distanciamento de informações, uma vez que
estas não têm acesso às informações pelos meios de comunicação comuns face à falta de acessibilidade.
(CABRAL, Sarah. Violência contra a mulher surda. Direito
Real, 2022. Disponível em:
§ 1o Para garantir a difusão da Libras, as instituições de que trata o caput deverão dispor de, no mínimo, cinco por cento de servidores, funcionários ou empregados com capacitação básica em Libras.
§ 2o Para garantir o efetivo e amplo atendimento das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, o Poder Público, as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos e os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, poderão utilizar intérpretes contratados especificamente para essa função ou central de intermediação de comunicação que garanta a oferta de atendimento presencial ou remoto, com intermediação por meio de recursos de videoconferência on-line e webchat, à pessoa surda ou com deficiência auditiva.
§ 3o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal e distrital e as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar às pessoas surdas ou com deficiência auditiva o efetivo e amplo atendimento previsto no caput . (Decreto 5626, de 22 de dezembro de 2005)
Dessa forma, reivindicamos acessibilidade com profissional TILSP nos Hospitais. Particularmente solicitamos ao Hospital Fêmina, esse, referência no
atendimento e exames a mulheres. Bem como, reivindicar o processo realizado pela Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul e a Federação Nacional de Integração e Educação de Surdos ao Ministério Público Estadual - Procedimento no 01625.000.745/2020, o qual vem reivindicar acessibilidade na área da saúde. A acessibilidade se dá através do TILSP e de conhecimentos que o médico precisa ter a respeito da diferença da mulher surda.
O ideal seria a presença de médicos e enfermeiros conscientes da diferença das mulheres surdas e que as atendessem naturalmente e estivessem capacitados a explicassem sobre seus casos, e as devidas precauções necessárias. Importa que nas faculdades médicas e de enfermagem sejam ofertados com obrigatoriedade cursos de Libras e cultura surda a exemplo do que já ocorre em algumas.
Referente a isso temos o caso de uma mulher surda que devido a falta de comunicação em um dos melhores hospitais de Porto Alegre foi obrigada a esperar a mãe chegar de um dos municípios afastados de POA. Quando a mãe chegou já era tarde. A filha estava com tumor cerebral. A mãe nunca contou a verdade para a filha surda que acabou falecendo.
A lei também denuncia esta violência:
Art. 26. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera- se violência contra a pessoa com deficiência qualquer ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que lhe cause morte ou dano ou sofrimento físico ou psicológico. (Lei 13.146/15)
Diante dessa violência cotidiana na área da saúde, como mulheres surdas não podemos ficar silenciosas. Nossas companheiras estão morrendo, estão sofrendo com a falta de informação, conhecimento de nossas diferenças, desespero controle de seus corpos.
Outro quesito são as áreas da segurança pública, que para nós, mulheres surdas, não se apresenta como um local acolhedor, no qual possamos estar devidamente reivindicando nossos direitos visando nossa segurança. Sabe-se que no Estado, possuímos 70 delegacias de Mulheres, onde nenhuma delas está preparada para nos receber ou, ainda, não é incomum relatos em que fomos constrangidas, obrigadas a nos tentar nos comunicar de diferentes formas que não
com a nossa Língua - legalmente reconhecida como meio de comunicação (Lei 10.436/2002).
Não obstante, há, em Porto Alegre, a primeira Delegacia de Combate à Intolerância, a qual fez uma ampla divulgação referente ao atendimento à Pessoa com Deficiência. Entretanto, essa delegacia não possui conhecimentos referentes a nossa diferença ou a acessibilidade necessária para nós, mulheres surdas, onde, mais uma vez, estamos a parte de toda e qualquer possibilidade de sermos autônomas em nossas decisões, inclusive em denúncias.
Novamente Cabral (2022) denuncia essa falta:
No que tange às mulheres surdas, a inferiorização de seu ser
não se dá apenas pelo fato de ser mulher, mas também face
à surdez, uma vez que, as pessoas surdas foram tratadas
como doentes, indignas de serem consideradas seres
humanos e incapazes ao longo dos séculos. (CABRAL, Sarah. Violência contra a mulher surda. Direito Real, 2022.
Disponível em:
Vivenciamos essas violências área da segurança, o pedido de medida protetiva, de não nos deixarem realizar chamadas de vídeo para alguém mediar nossas denúncias - inclusive, denunciamos que uma mulher surda teve seu celular arrancado de suas mãos quando tirou uma foto do documento que pediram para preencher, pois ela não sabe português. Até quando ficaremos refém de tal situação? Onde sofremos violência de todo tipo e, quando por um momento de coragem, vamos denunciar, sofremos toda a violência possível por não ter acessibilidade e não conseguirmos nos comunicar com a dignidade que merecemos como cidadãs.
Não há, assim como nos demais sistemas (sistema E-SUS), um levantamento de quantas mulheres surdas estão em situação de reclusão. Não sabemos, hoje, se essas mulheres estão devidamente atendidas pelo poder público e com seus direitos mínimos sendo assegurados. O que denunciamos é baseado em nossas vivências. Inclusive, não sabemos de dados sobre violência ou
atendimentos policiais às mulheres surdas para podermos prevenir e buscar assistência.
A Lei 13.146/15 diz:
Art. 79. O poder público deve assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva. § 1o A fim de garantir a atuação da pessoa com deficiência em todo o processo judicial, o poder público deve capacitar os membros e os servidores que atuam no Poder Judiciário, no Ministério Público, na Defensoria Pública, nos órgãos de segurança pública e no sistema penitenciário quanto aos direitos da pessoa com deficiência.
§ 2o Devem ser assegurados à pessoa com deficiência submetida a medida restritiva de liberdade todos os direitos e garantias a que fazem jus os apenados sem deficiência, garantida a acessibilidade. (Lei 13.146/15)
Enfim, nossa última denúncia: área educacional. Em situações de educação inclusiva como é proposta em nosso Estado, ainda que tenhamos alguns avanços, tais espaços educacionais não garantem uma acessibilidade qualificada. Cabe destacar que nós mulheres surdas, ainda temos grande dificuldade na continuidade dos estudos, seja de conclusão do nível fundamental, médio e, em maior grau, até alcançarmos o nível superior, além das questões de gênero que, por muitas vezes, nos obriga a evasão escolar. Ainda, em muitos casos, professores não compreendem seu papel educacional, onde “jogam” para os TILSP o dever de nos ensinar.
A educação bilíngue que acontece tendo a Libras como língua de ensino não é estimulada tendo em vista a educação inclusiva proposta. Isso sendo as pesquisas mostram que: leva as nossas crianças ao atraso mental e de cognição. A realidade é ocultada. As crianças surdas que são instruídas em libras têm muito mais desenvolvimento cognitivo. Um fato temos em duas meninas que tendo a mesma idade uma delas não foi para escola da inclusão e hoje é usada pela família para receber BPC (como se fosse doente) a outra teve estímulo da família, estudou em escolas que usam educação bilíngue, teve intérpretes e hoje é doutoranda e professora em uma de nossas universidades.
Mulheres surdas, quando mães e cientes que devemos cumprir nosso papel protetivos, nas reuniões escolares de nossos filhos, ficamos a mercê de toda e qualquer informação referente a estes, onde nos limita, mais uma vez, a desenvolver nossa maternidade em plenitude, ainda mais no que diz respeito a educação de nossos filhos, espaço esse que muitas vezes não só ensina, mas educa. E a nós, como auxiliarmos ou intervimos quando necessário, se não temos acessibilidade quanto às informações?
Diante do exposto, solicitamos à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul acolhida de nossa denúncia e providências necessárias com uma efetiva intervenção quanto ao descaso que nós, mulheres surdas, sofremos cotidianamente. Salientamos que nosso compromisso é no avanço aos nossos direitos, às gerações futuras e que sejamos vistas enquanto cidadãs que possuem direitos - iguais a qualquer outro sujeito, sejam eles ouvintes, homens, mulheres ouvintes, ou com qualquer outro tipo de deficiência.
Denunciantes, mulheres surdas/deficientes auditivas:
Ana Paula Gomes Lara - Alegrete Bianca Ribeiro Pontin - Porto Alegre Carilissa Dall Alba - Santa Maria Concilia Lopes da Rosa - Porto Alegre Elisa Guarese - Porto Alegre Fernanda Magnus - Porto Alegre Fernanda Pacheco Souza - Esteio Gisele Rangel - Porto Alegre
Gladis Perlin - Porto Alegre
Helenne Sanderson - Santa Maria Jaqueline Wandersee - Porto Alegre Lucila Vales - Porto Alegre
Marcia Magnus - Porto Alegre
Marília Valentina Schoenell - Porto Alegre Miriam Quadros Cordova - São Leopoldo Paola Stigger - Porto Alegre
Patricia Imai - Canoas
Renata Heinzelmann - Porto Alegre Roselena Mazocco - Porto Alegre Rosemari Bailon Porto - Porto Alegre
Intérprete de Libras/Português: Pâmela Garcia